Gabriel Mantelli

Fábio Takeshi Ishisaki

Anna M. Cárcamo

Carolina Garrido

Mundo afora, litígios climáticos conquistam vitórias (e, <a href="https://www.theguardian.com/environment/2023/jan/04/why-2023-will-be-a-watershed-year-for-climate-litigation">em 2023, isso não deve parar</a>). Acionar os sistemas de justiça tem se mostrado um caminho frutífero para enfrentar a crise climática e garantir a <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/proteger-clima-garantir-direitos-humanos-20102020">proteção integral dos direitos humanos</a>, bem como a efetivação de políticas públicas climáticas e compromissos assumidos pelos países e pelo setor privado. Depois do caso da <a href="https://revistapesquisa.fapesp.br/na-holanda-justica-obriga-governo-a-cortar-gases-estufa/">ONG holandesa Urgenda</a>, agora a tendência que se vislumbra é que a litigância climática não só se amplifique como ganhe novos contornos a partir de duas vertentes possíveis: a internacional e a transnacional.
De um lado, vê-se que os espaços de decisão dos sistemas internacionais passam a ser disputados por demandas climáticas. Em 2019, 16 crianças e adolescentes, incluindo a ativista Greta Thunberg e a brasileira Catarina Lorenzo, apresentaram uma <a href="https://www.unicef.org/brazil/comunicados-de-imprensa/16-criancas-e-adolescentes-incluindo-greta-thunberg-registram-uma-queixa">queixa ao Comitê dos Direitos da Criança da ONU</a> instando que Alemanha, França, Brasil, Argentina e Turquia tomassem medidas efetivas para proteger as crianças dos impactos das mudanças climáticas.
O caso, todavia, não rendeu o suficiente: a <a href="https://news.un.org/pt/story/2021/10/1766152">decisão do Comitê</a>, de 2021, se prendeu a aspectos processuais e indicou que, mesmo existindo um nexo causal suficiente entre o dano sofrido pelas crianças e os atos ou omissões dos cinco países, não poderia se manifestar sobre o pedido por falta de esgotamento das jurisdições locais.
Também chamou a atenção, no ano passado, uma decisão do Comitê de Direitos Humanos da ONU, órgão responsável por dirimir questões no âmbito do Pacto Internacional sobre Direitos Civis Políticos, em que indígenas das <a href="https://www.ohchr.org/en/press-releases/2022/09/australia-violated-torres-strait-islanders-rights-enjoy-culture-and-family">ilhas dos Estreitos de Torres na Austrália</a> obtiveram sucesso em um questionamento em face do governo australiano. No caso, o Comitê entendeu que os direitos humanos à cultura e à vida em família dos ilhéus foram violados. Os autores alegarem a ausência de medidas de adaptação e a falta de redução de emissões por parte da Austrália, o que resultou no aumento do nível do mar e em impactos decorrentes nas ilhas e nas vidas dos indígenas.
Foi a primeira decisão materialmente relevante de um mecanismo internacional de direitos humanos no tema das mudanças climáticas, <a href="https://news.un.org/en/story/2022/09/1127761">abrindo uma janela de oportunidade</a> ao reconhecer a importância dos países em não só implementarem políticas climáticas, mas também o fazerem a tempo para evitar violações de direitos humanos, especialmente perdas e danos não-econômicos.
Nota-se, ademais, a busca por novos caminhos capazes de garantir sustentação perante fóruns internacionais. A virada do ano de 2022 para 2023 foi marcada por <a href="https://www.estadao.com.br/opiniao/espaco-aberto/tres-cortes-internacionais-para-a-causa-climatica/">3 pedidos de opiniões consultivas</a> perante tribunais internacionais: o <a href="http://climatecasechart.com/non-us-case/18416/">Tribunal Internacional do Direito do Mar</a>, a <a href="https://cejil.org/pt-br/blog/chile-e-colombia-unem-forcas-para-pedir-a-corte-interamericana-de-direitos-humanos-diretrizes-para-responder-a-emergencia-climatica/">Corte Interamericana de Direitos Humanos</a> e <a href="https://www.vanuatuicj.com">possibilidade de pedido perante a Corte Internacional de Justiça</a>. Esses pedidos trazem a expectativa de que cada vez mais o direito internacional seja mobilizado para informar as obrigações jurídicas relacionadas à crise climática.
Por outro lado, há os casos transnacionais, em que um tribunal "de fora" processa determinada lide envolvendo partes de países distintos. Uma tendência é a de jurisdições do Norte Global sendo acionadas em razão de impactos e ilegalidades ocorridos em territórios do Sul Global. Superar a histórica dívida ecológica entre os países, a fim de concretizar os ideais da justiça climática, dá o tom desse tipo de estratégia processual interestatal.
Essa estratégia abre a possibilidade de empresas figurarem no pólo passivo das demandas domésticas, algo que deve ser celebrado diante da dificuldade no reconhecimento pelo direito internacional de empresas como portadoras de obrigações de direitos humanos. Ela também considera a atuação globalizada de diversas empresas, especialmente conglomerados transnacionais, que não se limitam a uma única jurisdição.
Paradigmático, um litígio climático transnacional extremamente relevante é <a href="https://climate-laws.org/geographies/germany/litigation_cases/luciano-lliuya-v-rwe">Luciano Lliuya v. RWE</a>, em que um fazendeiro peruano propôs uma ação na Alemanha frente à maior empresa alemã de energia. O fazendeiro argumentou que tanto a falta de medidas por parte da empresa quanto sua responsabilidade proporcional nas mudanças climáticas estavam causando o derretimento de glaciares no Peru e levando ao aumento de água em um lago próximo. Com risco do lago transbordar, levaria a perder sua fazenda e seu sustento.
Esse caso foi inovador, dentre outros aspectos, por solicitar recursos da empresa para subsidiar ações de adaptação para proteger sua fazenda, instalando diques e outras contenções, a fim de prevenir o dano. O caso ainda não foi julgado, mas surpreendeu ao ser admitido pela corte alemã de segunda instância em 2017, após ter sido negado na primeira instância por falta de nexo causal direto, e ter dado vazão, inclusive, a <a href="https://valor.globo.com/mundo/noticia/2022/07/06/empresa-pode-ser-processada-pela-mudanca-climatica.ghtml">ida de magistrados alemães ao Peru</a> para realização de perícia no local.
Outra estratégia pode ser identificada no pleito de 2021 em face do <a href="http://climatecasechart.com/non-us-case/envol-vert-et-al-v-casino/">grupo Casino na França</a>, em que organizações da sociedade civil e organizações indígenas brasileiras e colombianas fizeram uma reclamação frente ao grupo, que é dono do Pão de Açúcar, por venderem carne relacionada ao desmatamento na Amazônia. Dentre os impactos relacionados ao desmatamento ilegal destacam as contribuições em emissões de gases de efeitos estufa.
Apesar de, no Brasil, existir um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com os produtores da carne, as organizações alegam que o grupo Casino teria violado a lei francesa de devida diligência, visto que ela impõe um dever de vigilância de suas empresas subsidiárias para evitar o risco de violações de direitos humanos. O caso é um dos primeiros a judicializar a recente lei francesa de devida diligência e, apesar de ainda não ter decisão, pode abrir caminho para novos questionamentos de cadeias transnacionais de empresas sediadas na França. 
Mais recentemente, <a href="http://climatecasechart.com/non-us-case/four-islanders-of-pari-v-holcim/">quatro habitantes da ilha de Pari</a>, na Indonésia, iniciaram uma ação no final de 2022 em face da empresa de materiais de construção Holcim na jurisdição de sua sede, a Suíça. A empresa figura dentre as <a href="https://www.ecchr.eu/en/press-release/an-island-demands-justice/">50 maiores empresas emissoras de CO2 do mundo</a>. Seguindo uma estratégia similar ao caso peruano, eles requerem compensação por danos relacionados à mudança climática em Pari de forma proporcional a contribuição da empresas para o fenômeno através de suas emissões históricas. 
Mas os pedidos não param por aí: os demandantes também requerem a redução das emissões da Holcim em 43% até 2030, em comparação com os níveis de 2019, para se adequar ao que a ciência já demonstra ser necessário. Por fim, buscam uma contribuição financeira da empresa para medidas de adaptação na Ilha. Trata-se uma combinação sem precedentes de pedidos de redução de emissões de uma empresa e compensação por danos.
Seja no sistema internacional ou nos casos transnacionais, é importante que avancemos no sentido de operacionalizar as decisões "de lá" em nível doméstico. É, pois, necessário que, a depender das partes envolvidas, haja a acomodação dessas decisões ao sistema jurídico nacional para fins da sua efetiva execução. Em relação ao sistema internacional, há que se afirmar a vinculação das decisões dos tribunais e órgãos internacionais em que determinado Estado esteja atrelado. Se consideramos a jurisdição interamericana, por exemplo, veremos que o próprio sistema implica no dever do Estado de cumprir integralmente as sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Quanto à litigância transnacional, não há norma específica para ações climáticas e de direitos humanos no Brasil, mas destacamos a <a href="https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3956">Resolução CNJ 394/2021</a>, experiência interessante que instituiu regras de cooperação e de comunicação direta com juízos estrangeiros de insolvência para o processamento e julgamento de insolvências transnacionais. Nessa norma, é estabelecido que deverá haver um “protocolo” firmado entre os juízos para fins de cooperação e comunicação direta, não podendo esse documento alterar direitos materiais das partes, tampouco qualquer poder jurisdicional dos tribunais e juízos, visando a diminuição da litigância entre as partes nos processos concorrentes.
Em suma, apesar dos desafios, litígios climáticos internacionais e transnacionais demonstram grande potencial estratégico por alcançar empresas transnacionais em sua sede e os países mais responsáveis pela crise climática. Se os sistemas internacionais são capazes de fortalecer a solidariedade global, a tendência da transnacionalização é benéfica porque obriga os órgãos decisores a pensarem além das "caixinhas" do Estado-nação e do esquema normativo doméstico.
Também fertiliza o campo dos direitos humanos, ainda reticente na responsabilização concreta de empresas e grandes conglomerados transnacionais. E, finalmente, indica novos caminhos rumo à garantia da justiça substancial. Em um mundo em crise climática, em que os danos e impactos são tão transfonteiriços quanto são difusas as responsabilidades pelas emissões de gases de efeito estufa, caberá aos sistemas de justiça muita inovação e adaptação para dar conta desse desafio jurídico-civilizatório.

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JOTA

Caberá aos sistemas de justiça muita inovação e adaptação para dar conta desse desafio jurídico-civilizatório

Litígios climáticos devem se transnacionalizar

Litígios climáticos: caberá aos sistemas de justiça muita inovação e adaptação para dar conta desse desafio jurídico-civilizatório